sexta-feira, julho 20, 2007

Sobre o incidente de terça-feira


Editorial de "Folha de São Paulo"

Quinta-feira, 19 de julho de 2.007


Está para ser esclarecida a causa do maior acidente da aviação brasileira. É preciso esperar até que sejam concluídas as investigações, necessariamente complexas. Mas algumas conexões entre a tragédia -a segunda em dez meses- e o descalabro que tomou conta do setor aéreo nacional já podem ser estabelecidas.

O Executivo federal não está em condições de apresentar-se diante do desastre com o vôo 3054 na posição de quem tenha tomado todas as medidas para maximizar a segurança em Congonhas. Acidentes acontecem, mas a pista do aeroporto de maior tráfego do país só foi reformada agora -o governo preferiu investir antes no conforto e na cosmética do terminal.

Acidentes acontecem, mas a Infraero cometeu a imprudência de liberar pousos e decolagens no asfalto novo antes de ele ser tratado com os sulcos ("grooving", ranhura em inglês) destinados a facilitar o escoamento da água e melhorar a frenagem. Um dia após uma derrapagem e sob chuva, mantiveram-se as operações com a pista escorregadia.

Acidentes acontecem, mas o Executivo permitiu o inchaço de Congonhas, atendendo a conveniências comerciais das companhias aéreas -e à incapacidade do próprio governo de viabilizar investimentos para desafogar o tráfego crescente de aviões. A Anac, agência do setor, tem se portado como uma extensão dos interesses das empresas.

Incompetência, imprudência, tragédia. A despeito das causas do acidente com o Airbus A-320 da TAM, o desastre potencializa a crise da aviação civil, escancara a precariedade do transporte aéreo brasileiro e torna ainda mais urgente uma redefinição ambiciosa e profunda do sistema.

É inacreditável que reiteradas demonstrações de inépcia, ao longo de dez meses de crise, não tenham rendido nenhuma demissão no alto escalão do governo Lula. O descalabro aéreo necessita ser tratado com a seriedade técnica e a prioridade política que o tema exige. No emaranhado burocrático atual, ações conseqüentes -como a que enfim enquadrou a sublevação dos controladores militares- custam a acontecer.

Enquanto as decisões se arrastam em Brasília, o tráfego aéreo doméstico de passageiros cresce à média anual de 13% há quatro anos. Nesse ritmo, o volume de usuários dobra a cada seis anos. Se a estrutura de aeroportos e de controle de vôo exibe reiterados sinais de esgotamento hoje, que dirá daqui a um ou dois anos.

É preciso deslanchar já um programa de grandes investimentos que contemple, entre outros itens, a construção do terceiro terminal de Guarulhos e de um novo aeroporto na região metropolitana de São Paulo. O trágico acidente de anteontem evidencia que Congonhas precisará deixar de operar, em prazo visível, com vôos comerciais de média e grande escala.

O aeroporto central de São Paulo -com duas pistas curtas, elevadas, sem área de escape e incrustadas numa zona densamente povoada- transforma a menor falha numa tragédia em potencial. Desde já, a Anac precisa impor às companhias aéreas uma redistribuição de seus vôos para os aeroportos de Guarulhos e Viracopos (Campinas), ainda que essa providência implique, na prática, restrição na oferta de vôos a usuários da capital.

Outro passo necessário e emergencial para desafogar o tráfego aéreo na metrópole paulista é transferir pontos de conexão de viagens. Passageiros, por exemplo, que saem de Curitiba com destino a Belém não precisam fazer a troca de aviões na capital. A concentração em Congonhas dessas operações -bem como a permissão para partidas de vôos charter de suas pistas- é mais uma concessão feita pelas autoridades às conveniências comerciais das empresas.

Se tem faltado poder de regulação do Estado onde ele é mais necessário -no planejamento do setor e na imposição do interesse público às companhias aéreas-, sobra arcaísmo burocrático e ideológico quando se trata de alavancar os investimentos na infra-estrutura aeroportuária. O governo federal, como fartamente documentado, não teve fôlego financeiro para acompanhar as necessidades de gastos crescentes com o transporte aéreo.

As taxas aeroportuárias pagas pelos passageiros não redundaram na expansão nem na modernização do sistema no ritmo que seria adequado. O problema, no entanto, não foi o governo ter deixado de fazer tais investimentos com recursos próprios, a fim de cumprir metas de saneamento fiscal. A falta mais grave foi não ter permitido que outros agentes tomassem a iniciativa.

A construção de um aeroporto novo na Grande São Paulo poderia ser a contrapartida da concessão de Viracopos à iniciativa privada, por exemplo. Operação análoga em Cumbica poderia render a construção de seu terceiro terminal e a aquisição dos aparelhos mais atualizados para operar com segurança até sob a mais densa neblina.

Outros investimentos necessários para o setor -como os trens rápidos ligando terminais distantes a grandes centros- seriam passíveis de ser realizados na base das privatizações e das PPPs (parcerias público-privadas).Mas, imobilizado, incompetente e confuso, o governo Lula nada fez. Para que as mortes não tenham sido de todo em vão, que o acidente de Congonhas ao menos sirva para compelir a uma profunda mudança de atitude.




Editorial de "O Estado de São Paulo"

Quinta-feira, 19 de julho de 2.007


Desastres de aviação, dizem os especialistas, sempre têm mais de uma causa. Com a tragédia do Airbus da TAM não é diferente. As causas são a incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção presentes no sistema de transporte aéreo brasileiro. Perto desses fatores estruturais, eventuais falhas técnicas, ou do piloto, na origem da catástrofe de anteontem em Congonhas são dados acessórios. Essencial é o descalabro que permite o funcionamento a plena carga do maior aeroporto brasileiro numa área já abarcada pelo centro ampliado de São Paulo; a recusa das companhias aéreas em reduzir as suas operações ali, ou ao menos desconcentrá-las dos horários de pico; a submissão cúmplice da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aos interesses das empresas que dominam o setor; a calamidade administrativa, a politicagem e a fraude endêmica na Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero).

Tudo isso sob os olhos - e a responsabilidade objetiva - de um governo cujo presidente só quer ouvir o som da própria voz e continua a repetir hoje o que, horas antes do terrível acidente, admitiu fazer no passado - “a quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você pega no concreto”. E que traça ele próprio o retrato acabado de sua gestão ao confessar que “em determinados cargos (...) a gente faz quando pode e, se não pode, deixa como está para ver como é que fica”. No dia 29 de setembro do ano passado, 154 pessoas morreram no que foi, até às 18 horas e 45 minutos de anteontem, o maior desastre aéreo da história brasileira. Desde os 154 mortos da tragédia da Gol até as duas centenas de mortes desta terça-feira, descontado o palavrório entorpecedor de todos quantos têm parte com os problemas da aviação comercial no País - e com as possíveis soluções para eles -, continuou-se na estaca zero em matéria de “pegar no concreto” para melhorar os padrões de segurança de vôo no território. Para todos os efeitos práticos, “deixou-se como está para ver como é que fica”.

Nesse quadro de falência dos poderes públicos e de voracidade de interesses privados, Congonhas - sem as chamas, os corpos e os destroços - é a síntese das incompetências e irresponsabilidades que marcam a administração pública brasileira. Em abril de 2005, um brigadeiro, Edilberto Teles Sirotheau Corrêa, denunciou a “obsessiva prioridade” dada pela Infraero “às obras que proporcionam ‘visibilidade’, em detrimento das necessidades operacionais”. De fato, gastaram-se R$ 350 milhões para modernizar esse shopping center no qual se transformou o terminal do aeroporto que, já em 2005, registrava 228 mil pousos e decolagens, 33 mil a mais do que o desejável pelos critérios internacionais. Em janeiro último, o Ministério Público Federal pediu à Justiça a interdição da pista principal de Congonhas. No mês seguinte, um juiz federal proibiu aviões de grande porte, como Boeings e Airbuses, de operar no aeroporto enquanto os problemas da pista não fossem sanados. Uma instância superior invalidou a decisão, considerando-a drástica demais e fonte de impactos econômicos negativos.

Enfim, ao custo de R$ 19,9 milhões, a Infraero contratou o conserto da pista - e a liberou escandalosamente antes de nela serem acrescentadas as ranhuras transversais que asseguram o escoamento da água das chuvas e aumentam a aderência dos pneus dos aviões ao solo, facilitando a freada e reduzindo o risco de derrapadas como a que, na segunda-feira, arrastou por 150 metros, até o gramado próximo, um turboélice com uma vintena de pessoas a bordo, muito mais manejável do que um Airbus capaz de levar cerca de 180 pessoas. (Outro episódio, negado pela TAM, foi a arremetida, também na segunda-feira, de um aparelho da companhia, cujo comandante desistiu do pouso no último momento devido ao alagamento da pista.) As obras do grooving só poderiam começar na próxima quarta-feira. Pode ser que tenha contribuído para a tragédia do vôo 3054 um erro na manobra de pouso ou uma pane no sistema de freios do Airbus. Mas é certo que o desfecho seria outro se a pista tivesse plenas condições de segurança. Não as tinha e ainda assim era usada, em última análise, por incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção.